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sábado, 12 de maio de 2012

Lá vai um... (Luís Fernando Veríssimo)


O sono não vem. Você já leu tudo que queria ler, e o sono não vem. Você já repassou tudo o que fez durante o dia e planejou tudo que fará no dia seguinte, e o sono não vem. E o dia seguinte ainda está longe.

Contar carneirinhos pulando a cerca, será que adianta mesmo? Coisa de americano. Mas lá vai um, lá vai dois, lá vai três... Ih, lá vem o um de volta. Organização, gente. Lá vai quatro. O cinco não conseguiu. O seis pulou em cima do cinco... Assim não vai dar. Você vai ficar ainda mais tenso.

Pensar em nada. Isso. Fechar os olhos e pensar em nada. Esvaziar o cérebro. Concentrar o pensamento num ponto no exato centro do seu cérebro, depois transportar esse ponto para o exato centro do Universo. Você não é mais você, você é o que existe em torno desse ponto luminoso no exato centro do Universo.

Você é o Universo! Se você abrir os olhos, o Universo vazará pelos seus olhos e inundará seu quarto, inundará sua vizinhança...

Suas pálpebras são só o que retém o Universo dentro do seu cérebro e o impedem de invadir... o Universo. Suas pálpebras são as únicas tênues defesas do Universo contra o caos. Não abra os olhos, não abra os olhos, não abra os... Você abre os olhos, em pânico. Quem pode dormir com tanta responsabilidade?

Quem sabe ler mais um pouco? Tanta coisa para ler... Na verdade, só quem tem insônia tem tempo para ler. É por isso que todo intelectual tem aquela cara de zonzo. Não é cultura, é sono. Intelectual não dorme. Não dorme porque é intelectual ou é intelectual porque não dorme e tem tempo para ler? Você não sabe. A sua insônia não tem qualquer proveito cultural. A sua insônia, além de tudo, é burra.

Você lembra que quando era criança achava que tinha um monstro embaixo da cama. Quando precisava fazer xixi durante a noite, dava um pulo da cama, pro monstro não pegar o seu pé. E na volta dava outro pulo pra cima da cama. O engraçado era que você nunca imaginava que o monstro fosse sair debaixo da cama e correr atrás de você.

Era um monstro terrível, comedor de pé de criança, mas era preguiçooooso... Você pensa: até que seria bom se houvesse mesmo um monstro embaixo da sua cama. Pelo menos alguém para conversar. Trocar reminiscências da infância... Lembra os pulos que eu dava para cair na cama sem você me pegar? Vocês dariam boas risadas.

Nem precisava ser um monstro. O ideal seria ter um psicanalista embaixo da cama. Além de alguém para conversar, alguém para curar a sua insônia. Quem sabe contar psicanalistas pulando a cerca? Lá vai um, lá vai dois, lá vai três... Ei, você, o quarto: não é para analisar o simbolismo da cerca, é para pular! Deve ser um freudiano ortodoxo. Lá vai quatro, lá vai cinco...

Você começa a enumerar todas as mulheres que teve na sua cama de adolescente. Artistas de cinema, vizinhas, primas... Sua imaginação as colocava ao seu lado na cama e vocês se amavam loucamente. E o melhor: depois do amor, depois de saciado – você dormia! Como você dormia antigamente. Que fim levara aquele sono todo?

Cérebro vazio. Pensar em nada. Esperar o amanhecer. Esperar o bendito dia seguinte. E o dia seguinte parece ficar cada vez mais longe.

Estadão
Zero Hora
06/05/2012

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