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segunda-feira, 3 de junho de 2013

O que é a religião?, por Karen Armstrong

A primeira conferência do Fronteiras do Pensamento, neste ano de 2013, foi a da escritora britânica, Karen Armstrong*.
Algumas frases que eu anotei durante a conferência:
"Compaixão não significa sentir pena de alguém."
"Vamos amar a todos como as mães amam seus bebês." (Provérbio chinês)
Regra de ouro: "O que é odioso para ti, não faça para ninguém."

 
O resumo de sua conferência foi este:
"A regra de ouro de Karen Armstrong 
Por Sonia Montaño

A conferência de abertura da edição 2013 do Fronteiras do Pensamento teve início com a saudação musical de Cristina Caprelli Gerling ao piano. A religião na história da humanidade serviu como fio condutor para a escritora britânica Karen Armstrong abordar como as grandes religiões têm em comum a prática da compaixão. Sua visão teológica percebe o sofrimento como uma força criadora e política, transversalmente partilhada pela nossa comum condição mortal, que, por si só, já deveria nos permitir entender a dor do próximo. “Hoje, mais do que nunca, o mundo precisa de compaixão”, afirmou.

A busca de sentido
A escritora destacou como o conceito de religião, a partir da visão acadêmica, é apontado como impossível de ser definido e lembrou como, antes do século XVII, a religião permeava a totalidade da vida.
Para Armstrong, quando nos tornamos humanos, começamos a produzir religião, assim como arte, porque somos seres que precisam de significados. “Se não encontramos significado para o que fazemos, caímos em desespero. Queremos nos manter no senso de maravilha, expresso no mundo europeu pela palavra ‘religio’, que significa reverência”, explicou.
Com a modernização, cheia de conflitos e tensões, nossa visão de religião foi mudando, num processo penoso e lento. Ela deixou de ser algo coletivo, que atravessava todos os planos da vida, para transformar-se em algo privado, particular, interno. Entretanto, a essência da religião tem a ver com a diminuição do ego e com criar uma sociedade justa, já que todos os seres merecem respeito. O que nos manteria longe da iluminação – segundo todas as religiões – é o ego. “A postura do corpo, no Islã, por exemplo, mostra muito claramente essa rendição do ego.”
Lembrou, também, como a religião era um ato político, não porque padres ou bispos queriam poder, e sim porque o sofrimento do mundo é uma questão religiosa. A ideologia política, antes do século XVII, era permeada pela religião. A Meca de Maomé passava por uma revolução econômica, mas o lucro não era um objetivo que estava acima de todas as coisas. “É errado, diz o Corão, construir uma fortuna privada. Deve-se construir uma sociedade justa e decente”, insistiu.
Jesus também era político. Não era uma simples figura caminhando pela Galileia, tinha fundamentos políticos: buscava aliviar o sofrimento. O Sermão da Montanha diz “abençoados sejam os pobres”, não porque eles sejam “sortudos”, e sim porque na situação da Roma Imperial a exploração e a injustiça eram tais que as únicas pessoas livres de culpa eram os pobres, os outros estavam de alguma forma implicados.
Armstrong defende, sobretudo, como a religião mostra que há outra forma de ser humano. Na comunidade budista que existia na Índia no século V a.C., os monges viviam em compaixão, cortesia e gentileza, o que ia contra os costumes da época. Mostrar outra forma de viver é um ato político e espiritual.
“As pessoas associam religião com acreditar em coisas. ‘Ela é religiosa ou crente’, dizem. Como se aceitar doutrinas ou crenças fosse o mais importante das pessoas religiosas. Jesus não pedia que as pessoas acreditassem que ele era a segunda pessoa da Trindade e sim que se comprometessem. ‘Viver como os lírios dos campos’, por exemplo, requer um ato de lealdade, assim como trabalhar pelos pobres e sentar na mesma mesa”, enfatizou. Revelação é retirar um véu de uma realidade que estava lá e não conseguíamos ver. Para os judeus, por exemplo, cada vez que alguém vai ao texto bíblico, vai buscar um significado diferente, porque a palavra de Deus não se amarra a um único significado.

O conhecimento religioso
Certamente, religião para Karen Armstrong não é aceitar tudo o que lhe foi dito e sim pensar por si. “Não há um conjunto de leis que deva ser aceito. Pode-se duvidar. O conhecimento religioso não é algo que está na nossa cabeça, é um conhecimento prático como dirigir ou nadar”, explicou. Assim como é preciso pôr a mão na caixa de câmbio ou entrar na água e aprender a ficar na superfície, as capacidades da mente e do coração se desenvolvem na prática. Religião seria um fazer e não um pensar as coisas. “A trindade era uma meditação dada às pessoas para que pudessem pensar em Deus como o transcendental, o impensável que excede toda possibilidade de pensá-lo. Se você não faz essa meditação e aprende na escola, num processo de racionalização, o que é a trindade, ela não significa nada. No Ocidente, não tivemos essa meditação, e por isso não entendemos nada desse significado.”

A regra de ouro
O que todas as religiões têm em comum, então, é a compaixão. “Na minha juventude, Deus era bravo, não era gentil, a religião condenava o erro. Quando estudei as religiões, cheguei ao conceito de compaixão. Todas as religiões do mundo desenvolveram uma regra de ouro: não trate os outros como você não gostaria de ser tratado. Às vezes, fala-se na boa ação do dia como se o normal fosse fazer coisas ambiciosas e egoístas. Para Confúcio, a regra de ouro nos leva a encontrar o estado de transcendência, porque ela tira o ego do centro do mundo e coloca o outro. O ego nos mantém longe daquilo que há de melhor em nós”, afirmou. A compaixão no Ocidente se tornou muito frágil. Ter compaixão não significa sentir pena dos outros, significa colocar-se no lugar do outro todo dia e a cada hora do dia. Está associado com o útero, o amor materno. Nossa gentileza e nossa compaixão não podem se encerrar em nosso próprio grupo. Ame os estranhos, ame todas as nações, diz o Corão. “Trate essa dor como se fosse sua.” Armstrong lembrou que os grandes sábios que desenvolveram essa regra não estavam vivendo em jardins maravilhosos e sim em sociedades turbulentas, violentas, em estados de guerra. “Quando os sábios viam esse mundo, diziam: ‘Se não praticarmos a compaixão, vamos destruir uns aos outros. Se não tratarmos os outros como gostaríamos de ser tratados, o mundo não se torna viável’. Sou britânica e sei que, se tivéssemos tratado as colônias como gostaríamos de ser tratados, o mundo seria outro”, relatou.
Na contemporaneidade, estamos ligados pela rede mundial de computadores, e o que acontece no Afeganistão tem repercussões em Londres ou Nova Iorque. Criamos um mundo interconectado, já não é mais possível simplesmente ficar com “pena” do outro como se não tivesse nada a ver comigo: agora tem. “Somos inundados de programas de pessoas que expressam suas opiniões. Vivemos falando sobre os outros: ‘O problema dele é o seguinte...’; fazemos isso com civilizações inteiras: ‘O problema do Islã é o seguinte...’. Não devemos fazer com os outros o que não queremos que façam conosco”, afirma.
Foi por isso que, quando Armstrong ganhou o TED Prize, disse que gostaria de trazer de volta a compaixão ao centro das religiões. “A principal tarefa de nosso tempo é construir uma comunidade global em respeito mútuo, e as religiões deviam dar uma contribuição primordial para isso”, afirmou.
As pessoas que mais assumem a Carta pela Compaixão não são os religiosos e sim os empresários, porque eles são práticos. A campanha “Cidades Compassivas”, que já conta com quatro cartas, se propôs a encontrar formas realísticas de inserir a regra de ouro de forma prática no meio urbano. “Vamos constituir cidades irmãs, por exemplo, uma nos EUA e outra no Oriente Médio. Em dez anos, esperamos ter cem cidades da compaixão.”
Para encerrar sua fala, contou uma história da Ilíada, em que Aquiles mata Heitor e só vai retornar o corpo aos seus familiares quando o pai de Heitor lhe suplica, chorando. Homero diz que o pai chora por todos os seus filhos e Aquiles pelo seu próprio pai. Então, Aquiles coloca gentilmente o corpo de Heitor nos braços do pai e se olham em um longo silêncio e cada um dos dois consegue ver o divino no outro. “Nós nos apresentamos em nossa forma mais divina quando consideramos que nosso inimigo também sofre.”
Após a conferência, Karen Armstrong respondeu a perguntas da plateia sobre diversos temas, como as mudanças que podem ocorrer na Igreja Católica com o Papa Francisco; o crescimento do ateísmo agressivo no estilo de Dawkins; o fanatismo religioso; a tecnologia e o distanciamento humano; o ódio entre as religiões; o sincretismo religioso e as igrejas neopentecostais, que produzem curas instantâneas e pastores milionários instantâneos.
Entre suas respostas, destacou que a ideia de que há uma única essência da religião é uma ficção. A fé e o seu desenvolvimento são sincréticos. Não há um único catolicismo, ele se mistura com outras práticas. Se uma religião não se desenvolve, morre. As religiões das curas instantâneas foram contextualizadas pela conferencista dentro de uma sociedade instantânea, que busca a salvação instantânea. “Mas a religião não é um instantâneo; Buda, por exemplo, era muito cético em relação a milagres. As pessoas procuram por certezas na religião porque a vida é muito incerta, mas a religião não nos dá essa certeza. O que a religião pode fazer é nos ajudar a viver com as tristezas e as dores. Ela é um processo gradual e lento que deve ser feito em paz, muitas vezes por dia e gradualmente, mas não acontece num minuto ou num clique de um mouse, e sim gradativamente, até chegar à presença do sagrado, do mistério.”"


 Fonte: http://migre.me/eQKp3

* Karen foi agraciada com o Freedom of Worship Award, do Instituto Roosevelt, e, também, com o TED Prize, do qual resultou a Charter for Compassion, iniciativa focada em promover a compreensão e a paz. Aos dezessete anos, Armstrong se tornou noviça na ordem religiosa Society of the Holy Child Jesus, e, ao assumir os votos de freira, passou a chamar-se Irmã Martha. Decepcionada com a vida religiosa, quatro anos depois, abandonou o convento. Com uma trajetória pautada pelo rigor acadêmico e as marcantes experiências de vida, a escritora é tocada simultaneamente pelo chamado da fé e pela lucidez da ciência, e aborda, em quase todos os seus livros, a crescente dicotomia entre religião e filosofia, numa tentativa de reconstituir historicamente os fragmentos dispersos dos nomes de Deus. Dentre suas publicações estão Uma história de Deus, A grande transformação e A escada espiral.

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