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terça-feira, 20 de março de 2012

Fala-se tanto em ciclovias... Zona | por João Antônio


“(...)
Zona

Vou pedalando. O sol queima a rua Itaboca, me dá firme na cabeça, os bondes comem os trilhos, é um barulhão que estremece até as casas; os trens da Sorocabana e da Santos-Jundiaí vão se repetindo lá em cima do viaduto da Alameda Nothmann, carregados e feios. Gente se pendura até nas portas. Vou pedalando. (...)
Lá do Largo do Coração de Jesus vêm chegando as batidas da igreja; toca também a sirena da fábrica de máquinas de costura aqui da rua José Paulino. Meio-dia, sol queimando. Sozinho no meio da rua, apenas deslizo, pedalando ao contrário, folgando o impulso da descidinha, gozando. (...) O vento quente me dando na cara, o sol me enxugando os cabelos, os olhos doem um pouco, acordei agorinha. Gostoso, pedalar. (...)
Sei lá por que gosto. Sei que gosto. Atravesso essas ruas de peito aberto, rasgando bairros inteirinhos, numa chispa, que vou largando tudo para trás – homens, casas, ruas. Esse vento na cara... Agora vou indo lá para o Pacaembu. Vou pegar a Nothmann, subir, desembocar direto na Barra Funda, ô puxada sentida! É me curvar sobre o guidão, teimar no pedal, enfiar a cara. Depois, ganho a avenida larga e, numa flechada, alcanço o estádio.
(...) Vou pedalando. Muito tranchã esta magra em que pedalo, camisa aberta, pondo o peito pra frente, o queixo quase-quase no guidão, fazendo curvas e fincando disparadas por estas ruas de São Paulo, tirando minhas finas entre postes e carros, avançando contra-mão, tirando as mãos do guidão e guiando só com os pés, na gostosura maior dessa vida... De quando em quando, me dando a fantasia de ir pelas ruas desertas, curvando sempre, de calçada a calçada, como se estivesse dançando uma valsa vienense... (...)
Termino a Alameda Nothmann, sigo o arrastado lerdo do bonde Barra Funda zunindo como abelha, vou tomar a descida longa agora, entrando de fina entre o bonde e o caminhão, deixando os dois para trás. Chispo. Saio do selim, me curvo, meto força no pedal da magrela. E trim-trim, já me sinto absoluto na rua. (...)
Agora, é chispar e firme. Que a volada dos autos na Avenida Pacaembu vai de enfiada, a setenta ou oitenta, por baixo, baixo. E quem hesita se estrepa. Corro também, na maluquice de todos, sempre juntinho ao meio-fio e olho firme, que uma porrada aqui na avenida costuma levar o freguês lá pra casa onde o diabo mora.
Rasgo dois-três quarteirões voando, ganho o largo, pego a esquerda, tiro uma fina depressinha entre o carrinho amarelo do sorveteiro e a ilha, já vejo o estádio com suas bandeiras, seus refletores, a imponência dos portões. (...)
A moça da auto-escola aparecerá hoje? Não havendo jogo no Pacaembu, este trecho de uns quatrocentos metros fica vazio, vaziinho. Os homens da auto-escola aproveitam para dar lições. Vem uma dona novinha aprendendo a guiar. Fico na minha perambulagem, embromo; fingindo voltas, indo e vindo, batida velha de quem não está querendo nada. O que me interessa é o namoro de olhos com a dona. Aquela é filha de bacanas, moça de seus bons tratos, enxuta, enxuta. Uma boneca, uma princesa, gata. Está claro que não posso pular em cima. É do partido alto e minha charla ali não dá pé. Depois, sempre o cara ao lado que é o instrutor... Mas nos namoramos com os olhos e se pego essa criança costuro toda de carinho.
Desisto de esperar, ir, voltar e campanar. Hoje ela não vem. Toco de volta para a zona. Tenho pressa.
Pacaembu, Barra Funda, Campos Elíseos, Bom Retiro. Vou pedalando. (...) ”

- ANTONIO, João. Paulinho Perna Torta. In: Leão-de-chácara. 8ª ed., São Paulo, Cosac & Naify, 2002, pp. 112-122.

Fonte: http://bit.ly/GAg6H8
Imagens: Internet via Google

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